Minha avó paterna era uma figura quase mítica; estrangeira, falava português com um leve sotaque, pele muito clara, loira e de grandes olhos verdes. Lembro-me dela e de sua figura esbelta, sempre de vestidos acetinados, mangas e golas, bem recatada como as mulheres de sua época; os cabelos claros e longos ela os usava permanentemente presos num coque com pentes à moda espanhola.
Hoje ao lembrar-me de sua figura, vem-me à mente o semblante de uma pessoa entristecida cujo nome não combinava com a energia que irradiava: Alegria! Este era o seu nome. Um nome alegre para uma dama triste.
Minha avó era uma visita na casa de minha infância, hei de reconhecer isto; a pouca idade não me permitia um olhar cuidadoso sobre aquela pessoa, pessoa que procurava demonstrar o amor que sentia pelos filhos, mesmo que isso lhe causasse certo desconforto.
Como sou avó paterna, hoje penso bastante na figura da mãe de meu pai e de seu papel em nossa família; e sinto na pele também que ser avó dos filhos de um filho é diferente de ser avó dos filhos de uma filha; não que o sentimento seja desigual, absolutamente! Apenas o olhar da família materna é diferenciado, em grande parte dos casos, e isso é passado para os filhos.
Jovem adulta, ouvi pela primeira vez, de uma velha senhora portuguesa, no Rio de Janeiro, um ditado, que fiquei sabendo, antigo: “Filhos das minhas filhas meus netos são; filhos dos meus filhos serão ou não”. Hoje compreendo o verdadeiro sentido dessa mensagem cruel, mas ouço com frequência de amigas e parentes que isto se deve ao fato de que os filhos das filhas são criados muito mais próximos da casa da avó materna, daí os laços se tornarem mais fortes.
Volto à figura triste de minha avó Alegria, nós a conhecíamos tão pouco! Hoje, décadas e décadas após sua morte, descubro o porquê de sua tristeza: minha avó, que pensávamos ter tido cinco filhos, teve na verdade doze, e viu morrerem seus filhos, crianças pequeninas ou crescidas, em terra longe da sua, no interior do Pará, onde viveu grande parte de sua vida. Descubro também que alimentava consigo a tristeza de ver suas netas criadas distantes de sua religião original, o judaísmo. Não julgo porque não compreendo os motivos de minha mãe, pessoa que tampouco era católica praticante e cujas filhas foram todas batizadas na igreja católica; acredito que isso estivesse relacionado a uma necessidade de aceitação pela sociedade, numa época em que o preconceito era terrível.
Minha avó, última remanescente de uma colônia judaica no interior do Pará, concedeu uma entrevista a um antropólogo renomado, o qual pesquisava sobre a trajetória dos judeus naquele estado. Essa entrevista foi encontrada na Universidade Federal do Pará e embasa os estudos sobre os quais se debruça uma professora-pesquisadora residente em Gurupá, onde viveu minha avó, Alegria Serfaty Castiel.
Quando li o relato de minha avó falando de seus infortúnios, há quase cem anos, lágrimas cheias de dor desceram-me pelo rosto; saudades do que fui privada de ter, saudades da pessoa que deixei de conhecer verdadeiramente, a pessoa rica em histórias que vivia por trás daquela personagem melancólica e solitária.
Ponho-me a pensar nas avós paternas e no conceito cruel contido naquele horrível ditado; penso que, afinal, avós são avós...