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LEIA O CONTO " A TORTURA "
24 de  abril de 2014 | Autor : 1 | Fonte : 1


Você está preso! Qualquer  coisa que disser ou fizer poderá ser usada contra  você em juízo. Foi imediatamente recolhido a uma das celas, cujas grades se fecharam ruidosamente a sua frente, deixando-o sozinho naquele cubículo mal cheiroso e úmido. A cela não media mais que 2,0 x 3,0 m, tinha um beliche com duas camas uma em cima da outra. O vaso sanitário não tinha tampa e ficava escondido por trás de uma cortina de plástico fino e rasgado.

O odor forte de urina e fezes empestava o ambiente. Tentou ainda argumentar que tinha comparecido aquela Delegacia apenas para prestar depoimento, atendendo a uma notificação da polícia. Não tinha cometido nenhum delito, não tinha antecedentes, era judeu iugoslavo, porém a muito naturalizado brasileiro, jornalista, professor universitário. Era um cidadão de bem, nada justificava sua prisão. Mas de tudo que argumentou de nada lhe valeu. Estava trancafiado por trás daquelas grades. O calendário assinalava 23 de abril de 1975.
          Faltavam quinze minutos para meia noite e o sono quase já o dominava quando o barulho do ferrolho de encontro as grades o fez acordar. De um pulo pôs-se de pé e viu um soldado do exército entrar em sua cela, enquanto o outro ficava na porta. Ambos eram altos e fortes e empunhavam fuzis.

---Você vem comigo! Disse rispidamente  o soldado. Antes de sair puseram-lhe uma venda preta nos olhos. Foi então colocado num carro que  lhe pareceu ser uma camionete. O carro partiu em velocidade. Depois de rodar por alguns minutos em silêncio, o soldado que estava ao seu lado bateu em seu ombro e disse:

---Acho bom você dizer a verdade e tudo o que sabe, meu velho. Caso contrário poderá nunca mais voltar pra sua casinha, nem rever sua querida família.

---Quero saber o que eu fiz? Porque estou preso? Pra onde estão me levando?

---Calma velho! Aqui somos nós que perguntamos. Você só responde.

           Depois de alguns minutos o carro parou e todos saltaram. Andaram guiando-o até aonde deveria ser uma guarita, pois houve uma rápida parada e algumas vozes  foram ouvidas com ordens de comando. Continuaram andando provavelmente por um corredor, até que uma porta grande se abriu ruidosamente. Adentraram todos, ou seja, o preso e os dois soldados.

---Licença Comandante. Aqui está o homem! –disse um deles.

---Ótimo soldado! Levem-no para a sala de interrogatórios. Lá já o estão esperando.

---Ok, permissão Comandante!
          Voltaram todos pelo mesmo corredor até chegarem a uma escada. Anunciaram-lhe então que deveria descer aquela escada, guiado pelos braços do soldado.

---Não tente nenhum truque, caso contrário seremos forçados a machucar você.

           Aquilo lá embaixo parecia um grande porão. Úmido e com o odor de mofo.

 ---Licença Capitão! O Comandante pediu que comece logo o interrogatório e logo mais ele próprio vai descer para interrogar esse comunista.

---Sente-o ali naquela cadeira de ferro, bem embaixo do foco do abajour. Tenha o cuidado de amarrar suas mãos e pés, pois não quero ter surpresas desagradáveis.

---Sim senhor Capitão!

          Contido e amarrado,  com o foco de luz forte em seu rosto, mesmo já sem a venda dos olhos, ele não conseguia ver nada a sua frente, a não ser vultos que se moviam em volta de sua cadeira.

---Quero saber se o senhor está disposto a colaborar conosco ou vai preferir dar uma de herói – a  voz era rude e ameaçadora.

---Não sei do que o Senhor está falando. Aliás eu nem sei porque estou aqui. Sou um profissional, pai de família, brasileiro naturalizado, professor universitário, tenho domicílio e endereço certos e não cometi nenhum delito. Exijo meu advogado.

---Preste atenção, seu vagabundo de merda! Você está sendo interrogado pelo Exército Brasileiro. Aqui ninguém brinca com os adversários comunistas. Ou eles dizem o que precisamos saber ou morrem. Entendeu? E vou adverti-lo mais uma vez: responda nossas perguntas e conte tudo que sabe. Queremos saber qual a sua ligação com Londres,  com a União Soviética ou com Cuba. Quem lá de fora está patrocinando a proliferação do comunismo aqui no Brasil? Quais são os principais nomes que formam a coluna comunista aqui no Brasil? Vamos lá seu comunistazinho de merda.

---Não sei de nada disso que você quer saber. Sou apenas um correspondente da BBC de Londres. Não tenho ligações com a União Soviética muito menos com Cuba. Não tenho também nenhum nome para lhe dar. E mesmo que tivesse não entregaria nenhum amigo. Também não nego que sou do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Mas isso só diz respeito a mim, é a  minha ideologia. Nunca pratiquei nenhum crime conta o meu país.
          Foi quando ele recebeu o primeiro tapa em seu rosto, que pareceu pegar fogo e seus ouvidos pareciam que iriam explodir.

---Eu lhe avisei: aqui no DOI-CODI não se brinca com adversário. Vou lhe dar mais uma chance para não se machucar tanto: quais os nomes dos ativistas desse Partido Comunista de bosta?  Prometo que se você me der uma lista mando você embora. Caso contrário...
---Já disse que não sei do nome de ninguém e mesmo que
         Recebeu a segunda bofetada no mesmo lado que recebera a primeira, só que agora escorreu um filete de sangue do nariz e do ouvido. Pareceu que sua cabeça ia ser arrancada. Sentiu seu cérebro vibrar. Sua visão ficou turva por alguns segundos.
---Já vi que vamos ter que maltratar ainda mais esse infeliz.

         Foi até sua mesa, falou ao telefone com alguém e depois chamou os soldados:
---Levem-no para a sala de choque.

         Deitado sobre a maca de ferro e a ela amarrado pelas mãos e pés, o algoz capitão se aproximou e disse-lhe:

---Espero que fale logo tudo que sabe, caso contrário vai receber algumas vibrações que o ajudarão a se lembrar. É a sua chance de não passar por isso. Portanto, seja bonzinho e vá respondendo tudo que perguntei.

---Vá-se a merda Capitão! Já lhe disse que prenderam, estão interrogando e torturando o homem errado. Eu não sei de nada, não cometi nenhum crime!

         Quase não acabou de falar quando o seu corpo foi sacudido por uma convulsão que o fez levantar a cabeça e os pés. Mais duas ou três vezes recebeu outras ondas de choque que o fizeram urinar e defecar. Como não obtiveram nenhum resultado satisfatório, ainda tentaram arrancar-lhe algumas unhas dos pés e das mãos, porém sem resultado, pois ele havia perdido a consciência. Mesmo assim, quando começou a recuperar a consciência, viu que estava deitado e totalmente imobilizado sobre a maca de ferro, com o foco de luz em seu rosto e uma goteira que vinha de bem alto, com um pingo d’água, atingindo o centro de sua testa. Não quis acreditar no que estava sendo submetido. Não quis acreditar até onde a maldade do ser humano pode ir. Não sabia que horas eram. Porém tinha certeza que estava ali absolutamente só, pois tirando aquele foco, tudo era escuridão. O único barulho era o pingo d’água caindo do alto e se espatifando no centro de sua testa.

---Meu Deus, vou enlouquecer – pensou.

          Aos poucos ouviu gritos de pavor que vinham de bem longe, mas que logo foram abafados pelo som bem alto  de um carro.

--Certamente estão torturando outros companheiros—pensou.

           O dia ainda não amanhecera quando  ouviu barulho nas portas. Alguém estava entrando. Ouviu então a voz de seu algoz, o Capitão. Vinha acompanhado  de outros militares:

---Comandante, esse recurso do pingo d’água é infalível. Caso não dê certo, só nos resta...

---Calma Capitão! Vou eu mesmo interrogá-lo: Sou o Comandante Geral do DOI-CODI –disse  olhando para aquele infeliz todo amarrado e recebendo o maldito pingo d’água sobre sua testa. Vai agora colaborar com o Exercito?

---Não sei de nada do que vocês querem saber, não tenho ligações clandestinas com ninguém nem no Brasil nem no exterior. Não sou bandido, nunca fiz nada contra o meu país. Só quero a liberdade e a soberania do meu povo. Deixem-me em paz!

          O Comandante puxou o Capitão pelo braço e falou alguma coisa inaudível ao seu ouvido. A seguir saiu da sala, acompanhado por todos. Na sequência entraram na sala dois homens fortes, sendo um negro e outro com traços nipônicos. Puseram-se a desamarar o preso. Uma esperança de liberdade chegou a ser vislumbrada em sua mente. Foi quando o homem negro pegou seu pescoço por trás, dando-lhe uma “gravata” até asfixiá-lo e sentir o seu corpo inerte.

            Era o dia 25 de outubro de 1975, 8:45h.

             O ministro da Justiça entra apressado no Gabinete do Presidente da República, General Giesel, e pede permissão para ler a mensagem que acabara de receber:

             “ O Comandante do DOI-CODI, do quartel General do II Exercito, informa que o comunista Vladimir Herzog, convocado para depor naquele Comando, cometera suicídio em uma das celas nas dependências daquele Comando, tendo sido encontrado enforcado com o próprio cinto de suas vestes”

---Permita-me comentar, Senhor Presidente, apressei-me em vir comunicar tal fato a Vossa Excelência porque certamente vamos ter manifestações nas ruas. Teremos que ficar atentos.

---Esses comunistas de merda!!! O imbecil do nosso Comando arrumou não só alguns problemas para nós como as manifestações de rua, os abutres da mídia nacional e internacional caindo em cima de nós, mas também criou e deu vida a um mártir.

PVH-RO, 23/04/14
Samuel Castiel
 

ACLER - Academia de Letras de Rondônia
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