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AOS MESTRES DO PASSADO
28 de  setembro de 2013 | Autor : 2 | Fonte : 2


As lembranças dos tempos de estudante sempre são viagens saudosistas que trazem a juventude de volta. São tantas que talvez só um volumoso livro as coubesse inteiras. Detenho-me, por isso, em um aspecto dessas reminiscências: as marcantes recordações de alguns professores de nossa Porto Velho do passado.

D. Noêmia morava alí, na José do Patrocínio, a uns vinte passos de nossa casa,  a de número 558. Lá, hoje, há uma das residências da família Matny. Foi a primeira professora de quase toda a garotada daquela época, anos 1950.  Para nós, era uma paciente velhinha que, assessorada por Dalila, sua fiel companheira de moradia, ensinava a ler,  a escrever e a contar, sem castigos para as nossas ignorância e peraltice. Da primeira professora a gente nunca esquece... A minha foi a professora Osvaldina, que  também lecionava em sua casa, localizada no centro comercial de Porto Velho. Lembro-me que a condição imposta por mim para estudar, debaixo de meus três anos e pouco, era que tia Inácia me acompanhasse durante toda a aula, já que mãe Maria não podia fazê-lo porque tinha de trabalhar para ajudar no sustento de nossa família. Certo dia, minha acompanhante resolveu dar uma escapada durante o período da aula, achando que eu não notaria. Ledo engano. Nem mesmo havia chegado à calçada da rua, lancei-me, aos gritos, pela janela e fui ao seu encontro. Preocupada com minha reação,  ela voltou prometendo-me que nunca mais faria aquilo.

Depois vieram outros mestres. Muitos outros. De alegres e de tristes memórias. Prefiro relembrar dos primeiros. O professor Lourival Chagas da Silva  chamou minha atenção quando, em sua primeira aula de português, procurou expressar-se didaticamente através de gizes coloridos ao tratar das classes das palavras. Seu jaleco branco compunha uma elegância nunca vista em  outros professores. Penso que meu gosto pelas letras recebeu estímulo ao ver aquele diligente docente tratar com tanto esmero e domínio o idioma de Camões.  

Estudei o primário e o ginásio no Colégio D. Bosco, que funcionava no prédio ao lado da Catedral, onde atualmente é uma faculdade católica.  Assim como o mestre Lourival, que não era padre, lá convivi com outros de admirável saber. Sempre admirei a formação intelectual dos  salesianos, que sabem latim, estudam filosofia, psicologia, teologia e outras ciências com profundidade. O padre Angelo Spadari, além de sua respeitável bagagem intelectual nesses temas, era um cientista nato, com importantes contribuições à mineralogia e à zoologia. Mantinha, inclusive, um museu em uma das dependência do colégio D. Bosco, onde foi diretor. Os padres Claudionor e Jaime, que eram jovens e inovadores, também deixaram boas recordações.

O professor Enos Eduardo Lins foi outro  mestre do passado de Porto Velho que merece  ser lembrado com todas as honras. Negro, com um corpanzil que impunha sua presença, emoldurado por postura de quem sabia o que dizia. Disse-me meu sogro, o Dr. Hamilton Gondim, que grande parte da vasta cultura daquele educador  foi adquirida no tempo dedicado ao estudo quando esteve preso, por questões políticas, em Fernando de Noronha. Tive pouco contato com ele, apenas como seu aluno de inglês, em uma série de que não me lembro. O professor Enos era o nosso Ruy Barbosa. Seus conhecimentos eram tão apregoados que ganhavam conotações  hilárias em certas ocasiões.

Conta-se que, certa feita, ao passar  com seu veículo, uma rural, nas proximidades da casa do professor Lourival, no Caiarí,  foi chamado por este, que queria uma carona, pois começava a chover enquanto ele se dirigia, como Enos, para a Escola Normal Carmela Dutra, onde ministrariam aulas naquela tarde. Sob pingos já fortes, Lourival correu até próximo à janela do carro  e disse: “Me dê uma carona, professor”. Enos, incontinente,  meteu o pé no acelerador, deixando seu colega, já molhado, sem condução e sem entender aquela atitude, uma vez que eram amigos de longa data, pois Enos fora seu mestre de português, de história, de pedagogia, de didática e de prática de ensino, no então Curso Normal Regional Carmela Dutra. No dia seguinte, ao encontrar Enos na escola, Lourival  foi veementemente  admoestado por ele. Enos, como sempre professoralmente, esclareceu: “Professor, o senhor sabe, não se deve iniciar uma frase com pronome oblíquo. Portanto, é: “Dê-me uma carona” e não “me dê”, como disse ontem”.

Além de grande professor, Enos tinha o gosto refinado, o que passava para a educação de suas três filhas, a quem impunha o aprendizado de piano e línguas. Quanto ao estudo curricular, ele exigia o máximo delas, como fazia com seus alunos, na Carmela Dutra, e como fizera com as alunas do Maria Auxiliadora, onde  lecionou logo que chegou ao então Guaporé. O Victor Sadeck, colega médico, filho de família pioneira,  contou-me que certo dia o professor Enos  foi à casa dele queixar-se à  sua mãe, D. Odaleia, professora da Escola Normal, de sua decepção com uma nota que uma de suas filhas havia tirado. D. Odaleia,  sem entender os motivos de Enos, disse-lhe que ele estava enganado, pois sua filha havia tirado nota 8 na prova e não havia razão para aquela sua decepção.

“Professora Odaleia, nota de negro é 10!”, respondeu-lhe enfático. Outro momento de indignação do mestre com a ignorância, dizem, aconteceu na casa da família Amora, quando em uma festa para adolescentes, Eudézia, sua filha virtuose, tentou dar um concerto de piano clássico. Como a moçada estava a fim de curtir o ritmo do yê-yê-yê, em voga na época, começaram a ensaiar uma salva de vaias. Professor Enos, que se fazia presente, não suportou a provocação: perdeu a compostura e começou a  chamar os mal-educados de vândalos e ignorantes.      

O eminente mestre, dado o seu reconhecido saber e modo muito próprio de ser e agir, tornou-se uma figura popular sinônimo de erudição. Por isso, por esse aspecto  por vezes com conotações curiosas, não se sabe o que é  verdade ou mentira do que dele até hoje se conta. Mas quem pretende lembrar os personagens  marcantes de nosso passado, não pode suprimir essa figura exponencial da cultura dessas terras de Rondon. Todavia, não se deve perder a oportunidade de dizer que o povo de Rondônia  ainda deve ao meritoso mestre, já falecido,  justas homenagens, principalmente oficiais. Lamentavelmente estas, que preferem alçar ao pódio dos merecedores algumas nulidades, cujos méritos não vão além das trinta moedas de suspeitos critérios políticos.

Em tempo em que muitos professores fingem que ensinam e outros tantos alunos fingem que aprendem, torna-se cada vez mais rara a concepção de educador, que vai muito além de tão somente ministrar aulas, mas invade a difícil seara dos exemplos e das lições de vida. Para tal, os critérios pecuniários, sempre presentes a atormentar esses profissionais, na sua maioria injustamente remunerados, não podem subtrair-lhes as virtudes vocacionais indispensáveis para o cumprimento de seu nobre e fundamental ofício de transmitir seus conhecimentos para instruir e formar consciências. Foi justamente a prática continuada dessas virtudes que tornou os mestres aqui citados inesquecíveis para toda uma geração de seus alunos.   

Nota do autor — Houve outros educadores em nosso passado que merecem homenagens; entre eles, o professor Batalha, as professoras Marise Castiel, Aurélia, Elvira etc. Neste texto, restringi-me aos que convivi como aluno por um período mais extenso. Todavia, deixo consignada minha homenagem a todos aqueles que cumpriram com competência e denodo seu nobre ofício de transmitir saberes.



Viriato Moura
Médico, jornalista, artista visual, idealizador e apresentador do programa de televisão Viva Porto Velho, colaborador de diversos sites a nível local e nacional.
 

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